Cosimento.
March 23, 2023 § Leave a comment
Uma das máximas da cozinha é “deixar o fogo trabalhar”. Pratos diferentes demandam temperaturas diferentes. Por vezes você deseja o choque rápido de uma mudança brusca de temperatura. Em ocasiões diversas um lento cozimento por dias num encantador caldeirão. Existe uma linearidade invejável na cozinha.
Mas este texto não é sobre cozimento e cozer, é sobre cosimento e costurar.
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Um dos crimes mais deploráveis dos quais sou culpado é a compra indiscriminada de livros que permanecem por anos a fio nas estantes, aguardando um momento de leitura que pode ser que nunca chegue, como um condenado à morte com um câncer terminal espera pela execução da pena.
Parte da culpa por tal crime é uma ambição desmedida (certamente um dia lerei O Dicionário Infernal), outras vezes é um mal colocado desejo de me adequar a um padrão socialmente aceito de cultura (por óbvio ninguém deve morrer sem ler A Ilíada). Um sem número de vezes são testemunhas silenciosas de fases estranhas da minha vida (olá, Gramática do Hebraico Bíblico, estou falando de você).
E ocasionalmente são vítimas de um crime de motivo fútil: Olha! A Autobiografia do Humberto Gessinger! Eu PRECISO comprar esse livro que estava num saldão de uma livraria para deixar uma década parado e ler de repente no momento mais propício depois!
E, sim, nada disso é álibi, mas sim confissão de culpa.
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Engenheiros do Hawaii é talvez o meu maior guilty pleasure. Uma frequente confissão quase jocosa de que eu gosto de música ruim. O adjetivo ruim, aí, vem do fato de que eles são os estranhos do cenário musical do pop/rock da década de 80. Renato Russo ainda tem ardorosos defensores. Cazuza talvez seja o mais criativo e lírico artista daquela geração. Diversos outros são melhor entretenimento e gozam ainda hoje de um reconhecimento maior.
Para mim, porém, Engenheiros do Hawaii sempre foi a banda da qual eu me considerei realmente fã.
Uma das recordações mais antigas que tenho é a de acordar sem motivo alguma manhã antes do sol nascer e decidir, criança, ligar a televisão. Mal sabia eu que a programação ainda não havia começado e a tela traria apenas as faixas coloridas indicativas da ausência de programação e música, no caso, Exército de um Homem Só, que talvez seja a grande culpada por eu ser quem sou, ou a cúmplice perfeita, Bonnie para o meu Clyde.
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Não pretendo fazer uma grande resenha a respeito do livro, devorado em uma sentada. Sua relevância para não fãs é nula. Para fãs, talvez ainda assim seja pequena. Porém, um breve aparte a respeito de um dos topos do livro merece ser feito, e que conversa maravilhosamente bem com o filme “Bohemian Rapsody”.
No livro, Gessinger narra que por ocasião da composição de “Terra de Gigantes” o empresário da Banda mencionou que a música tinha potencial para ser um sucesso, mas precisava de bateria para se encaixar no formato esperado de uma baladinha de sucesso.
No filme, por sua vez, o Empresário da banda critica a música “Bohemian Rapsody”, falando que nenhuma rádio iria tocá-la, pois ela é muito longa e confusa.
Ambos os artistas (meio feio colocar Queen e Engenheiros em comparação, ok), porém, decidiram ir contra as orientações do empresário e manter a obra como está. Gessinger mencionou até que colocou uma virada de bateria pra fingir que ia colocar a bateria, só de zoeira com o empresário.
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A grande lição de vida que eu tiro desse ponto, nesse momento (em que me questiono para quê voltar a escrever e em tempos de chat gpt e AI artística) é que existe uma grande distância entre a criação artística (nos dizeres de Mário de Andrade) viril e criar para o público.
Sempre defendi e continuo defendendo o pop. Escrever uma canção como “Evidências” que permeia a cultura e o conhecimento coletivo de um país merece, com toda a certeza, enorme respeito.
Porém as fórmulas e anti-fórmulas artísticas são terreno árido e estéril. Como um brutalismo literário, escola de engenharia forçosamente levada ao campo da arquitetura.
Algum jornalista disse que jornalismo é publicar o que ninguém quer dizer, e que qualquer coisa diferente disso não é jornalismo, é relações públicas. Escrever o que o público quer ler não é arte, é engenharia.
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Qual a linha invisível que uniu um livro comprado uma década atrás e que ficou cozinhando em minha estante, Bohemian Rapsody, Chat GPT e esse blog eu não sei, mas esse é o mistério da costura: ora a linha se vê, ora não se vê, mas as coisas que une se tornam um novo tecido.
Este Blog é uma Ferida Aberta.
March 22, 2023 § Leave a comment
Que eu tenho medo que se feche.
Tenho um punhado de coisas das quais me orgulho e escrever é uma delas.
Pode parecer presunçoso, talvez até prepotente, afirmar que tenho um punhado de coisas das quais me orgulho, porém, em sua raiz, punhado é uma porção que cabe num punho. Nesse sentido, ter um punhado de coisas das quais me orgulho é algo deveras preocupante.
Este blog comemora, em 2023, dezenove anos de idade. Quase duas décadas. E por muito tempo foi por ele que eu me definia. Quem sou eu? Um cara que escreve. Que ocasionalmente escreve bem. E com alguma frequência acerta a veia da literatura.
Hoje eu tão pouco, talvez nada, escrevo.
Tomo a iniciativa de devassar a ferida aberta. Um blog que eu não apago, mas também não nutro. Nem morto. Nem vivo. Talvez nisso um retrato de mim mesmo.
Cheguei na internet quando era tudo mato. A gente jogava bola onde hoje é o Twitter. Instagram a gente conhecia como fotolog. Era uma época em que a produção de conteúdo demandava um pouco mais de trabalho, era um pouco menos imediata. Menos acessível. A postagem demandava intenção, uma mensagem a ser dita. E era uma era sem algoritmos.
Ou eu estou, novamente, idealizando o passado. Talvez a internet fosse igualmente entediante, mas eu estivesse adolescente apaixonado com estrelas nos olhos.
O Drama real continua sendo o tema proposto pelo paraninfo de minha formatura na faculdade: a pior saudades que existe é a saudades de si mesmo.
É isso, se os Alcoólicos Anônimos estiverem corretos, esse é o primeiro passo, admitir a existência do problema. Sinto saudades de mim mesmo. Sinto saudades de uma internet em que as pessoas produziam textos íntimos e pessoais, não porque não existam mais textos íntimos e pessoais, mas porque eu não os procuro nem os escrevo.
Alguém, em algum lugar, está fazendo boa arte. Está naufragando em um oceano de emoções e jogando baldes e baldes de textos, poemas, crônicas e literatura pelo tombadilho na esperança de que, se se esforçar muito, vai tirar mais água de dentro de si do que entra, evitando o soçobrar e uma lenta morte abraçado à lauda de salvação.
E eu só preciso encontrá-lo.
Nome aos Bois.
August 9, 2019 § Leave a comment
Um dos motivos pelo qual eu ando escrevendo tão pouco é a curva de aprendizado é uma função radical: de alta declinação no começo e baixa declinação no final.

Isso é a curva de uma função raiz: quanto maior o tempo, mais difícil é obter um incremento.
O que, obviamente, não significa que ocasionalmente eu não tenha vontade de compartilhar pequenos avanços.
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A última vez que eu entrei em um tatame foi quatro anos atrás. Um amigo meu, professor, pediu para eu aparecer no treino. Fui. Depois do treino regular, ele pediu que as pessoas se distribuíssem pelo tatame para o combate. Ele perguntou se eu queria lutar. Respondi que sim. Ele respondeu rindo “Ah, mas quando você ia negar uma luta. né?”
O que ele não sabia é que eu estava com medo. Eu estava (e estou) absurdamente fora de forma. Sem fôlego, sem alongamento, lento, fraco. Eu ia entrar num tatame pra enfrentar um cara em seus 20 anos que estava treinando três a quatro vezes por semana, no primor da forma física e técnica. Óbvio que eu tinha medo de me machucar (como me machuquei, estirando o ligamento do tornozelo em um low kick mal aplicado).
Mas eu não admitiria ficar paralisado pelo medo. Lutei todas as lutas que me colocaram para lutar (e pedi mais algumas, pra deixar bem claro pra mim mesmo que eu era mais forte que meu medo – e bom senso).
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Por outro lado, com enorme frequência, eu elogio o medo. O contexto é sempre o mesmo: “Medo é bom. Medo de fazer merda é saudável. Te ajuda a não ser um escroto na face da terra”.
O Medo, nesse sentido, está intimamente ligado a uma preocupação com os efeitos de suas ações. Eu chego mesmo a falar que ser um bom pai passa pelo medo de ser um mau pai.
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Ocorre que esse medo não é medo de verdade. Medo é uma resposta instintiva de auto-preservação a uma ameaça real ou percebida. O medo de falhar, por exemplo, é uma garantia de manutenção da imagem social (ou “face”).
Quando esse “medo” está relacionado ao cuidado em desempenhar uma tarefa não é medo, mas responsabilidade. Comprometimento. Até mesmo Empatia.
Responsabilidade traz a etimologia de “aquilo que faz pontes entre as coisas” (Res: Coisa, Pons: Ponte). É a capacidade de se conectar com o mundo e enxergar nele beleza e valor que merece cuidado.
Obviamente é um pouco presunçoso se sentir responsável pelo mundo. Mas, no fim, tudo se resume ao tamanho do mundo pelo que você se responsabiliza: você, sua casa, sua família, seu bairro, sua cidade e seu mundo.
Tem bastante espaço para crescer.
A Apologia da Coragem.
August 21, 2018 § 1 Comment
Caro Irmão de Armas, saudações nesta longa madrugada.
Quebro meu jejum de epístolas pois encontrei algo merecedor de ser dito. Muito alertam quanto aos riscos da inércia. De que um corpo parado tende a continuar parado. Nada alertam que a inércia não é uma força constante no tempo. Quanto maior o tempo parado, maior a tendência a permanecer parado. Quanto maior o tempo em movimento, maior a tendência a permanecer em movimento. Sei que isso pode parecer uma ofensa ao axioma da não comunicação de eventos independentes, entretanto, você bem sabe: quebramos mais leis da física entre as 18:00 e as 06:00 do que um deputado federal ofende as leis da economia em um ano.
Qual a força que me motivou a esta missiva? Qual a força que derrotou a inércia? Por que motivo me aventuro pelo texto datado em um veículo datado e dirigido a leitores datados, que insistem em acompanhar tão superado meio?
A Coragem.
Não entenda que tive coragem de enfrentar a inércia e, com isso, discorrer sobre relevante tema. Não. O Tema é a Coragem. Ela é meio e fim dessa missiva. E espero que ela encontre seu coração como encontrou o meu. Meu objetivo é um e somente um: defender a Coragem como a maior de todas as Virtudes e o caminho para uma Vida Plena.
“Mas a Coragem?” questionará você. E talvez prossiga “Mas e o Amor, a Caridade, a Humildade, a Paciência, a Bondade, a Sabedoria e tantas outras virtudes?”
Lhe responderei, entretanto, que são virtudes menores. A sobremesa de um lauto jantar, que após a entrada, o vinho e o prato principal coroa com prazer e satisfação. Todas elas só possuem valor diante da Vida, e é a Coragem que defende a Vida.
E digo mais! Desconfie! Desconfie de todas as respostas que beneficiam quem responde! O Amor, a Caridade, a Humildade, a Bondade, a Paciência e o Perdão são virtudes, sim, mas virtudes que florescem e crescem na relação com o outro. Desconfie das receitas para a felicidade que fazem os outros felizes, repassando a você as custas da abnegação, do sofrimento e do trabalho.
Para carrapatos, a maior virtude é não se coçar.
“Sem dúvida que tais pseudo-virtudes merecem escrutínio, Caro Anarco, mas e a Sabedoria? Não seria ela a Virtude por Excelência? Conhecer o Belo, Verdadeiro e Justo?”
Caro amigo, se as pseudo-virtudes acima elencadas (e tantas outras) merecem escrutínio por serem convenientes desculpas para defender a pusilanimidade, a Sabedoria merece empalidecer perante a Coragem, não por ser vício disfarçado de virtude, muito pelo contrário, mas por ser qualidade longe da Virtude.
A Virtude é um elemento da Fibra Moral do Indivíduo. O constitutivo de seu ser. A Sabedoria é uma capacidade. É a capacidade de enxergar as coisas tais quais são, e perfurar o véu do glamour, da ilusão e da falsidade. São os Olhos de Zeus que tudo veem.
Te questiono, portanto, é correto que a medida de alguém seja dada pela capacidade e competência? Seja dada pelo aprendizado e vivência? Certamente sabemos que a Sabedoria será fundamental para a Vitória e Prosperidade, assim como o trabalho de seus ancestrais e a boa fortuna, entretanto, reconhecer como virtude a Sabedoria do Sábio é como reconhecer a Força do Forte: é a consequência natural pela qual o resultado se manifesta.
Não se reconhece como virtude da luz o iluminar, pois este é a essência daquela.
A Coragem, ao contrário de sua irmã, Sabedoria, não padece dessa falha lógica. A Sabedoria advém da capacidade, mas a coragem é indepentente desta.
Não é Coragem lutar a batalha que se sabe vitoriosa assim como não é mérito escolher corretamente diante da certeza.
A Coragem é a Virtude de Agir diante do Medo. A Coragem brilha diante da incerteza. Caminhar mesmo quando não há estrada. Avançar mesmo quando não há saída. Escolher mesmo quando não há certeza. O Salto de Fé é a Coragem Primordial.
A Coragem é a Virtude do Eu, pois é a única que se manifesta na solidão absoluta. Ela permite ao Eu enfrentar o mundo e a si próprio quando a batalha se apresenta e a certeza se esconde. A Coragem que lança o Homem nas trevas do desconhecido e lhe permite aterrisar no aprendizado. A Coragem permite sobreviver à falta de todas as demais virtudes e conquistá-las.
Sabedoria sem Coragem é astúcia. A Coragem de agir diante da dúvida ensina e o aprendizado nos torna sábios.
Amor sem Coragem é subserviência. A Coragem permite as almas se verem como pares.
Paciência sem Coragem é abnegação. A Coragem transforma o não-agir em ação.
Justiça sem coragem não merece nem tal nome, é mera adulação. A Coragem é a Armadura e Espada da Justiça.
Não é lendário o Espadachim cego, que se lança ao duelo confiante apenas em sua arte, sem precisar ver o ambiente? Não é mitológico o Profeta sem olhos, que diz a verdade a reis e mendigos indistintamente?
Ouça-me, meu amigo. A Coragem não iluminará seu caminho, não curará suas dores e nem pacificará seu coração. Mas ela permitirá que você não pare de andar, que você não desista da luta e que não perca a esperança.
Martis Hastam Omnia Vincit.
Sequoias.
May 2, 2018 § 2 Comments
A Arte não imita a Vida (Chupa, Platão!). A Arte idealiza a Vida. Por isso em filmes ninguém nunca pega o troco, nunca disca o número errado, nunca recebe ligação de telemarketing e nem precisam repetir o que disse (a menos que isso tenha finalidade dramática). Sabe aquela dificuldade em pegar um celular tocando no bolso da calça sem desligá-lo? Nunca acontece em filmes.
A Arte usa a Vida. Quebra, recorta e cola para formar um mosaico que, de alguma forma, vai ser mais Vivo que a própria Vida. (Uma tentativa de impedir um avião de decolar para não permitir que o amor da sua vida vá embora, mas vai te render um inquérito na Polícia Federal).
Talvez a Arte seja, em verdade, mera digestão. Como uma Bolha Assassina, que fagocita a Vida, a digere e usa os aminoácidos para construir algo novo e tão inédito quanto uma Criatura Mitológica fantástica que é tipo um cavalo (que já existe) com um chifre (que já existe) no meio da testa (que já existe), mas, ei, é criativo, juro!
A beleza do unicórnio não está na sua existência. Nem na sua biologia. Menos ainda na criatividade (afinal, um ornitorrinco num dia ruim dá de dez a zero num unicórnio em termos de criatividade). A beleza do Unicórnio está na ideia de que é algo extraordinário e merecido apenas para poucas pessoas. Dificilmente o implante de células-tronco de um Narval na testa de um Mangalarga Marchador dará o mesmo resultado. Especialmente porque detalhes desnecessários como a gravidez dos unicórnios não seriam tão agradáveis (especialmente na hora de sair).
O ponto é que a Vida é muito mais simples do que a Arte. E não me refiro à simplicidade-filé-grelhado-apenas-com-sal-grosso. Me refiro à simplicidade vou-mandar-mensagem-porque-estou-na-seca-e-quero-transar.
Estatisticamente, aquele casal no restaurante quer apenas uma boa comida (pun intended). Estatisticamente, a maioria absoluta é motivada por questões muito mais simples, hormonais, físicas ou até mesmo por um instinto de sobrevivência que faria muito mais sentido em um animal sem sapiência. (Mal posso esperar para que vocês passem pela sapiência também, Bonobos!)
99% dos seres humanos são 99% animais. O 1% que sobra se divide em uma curva de cauda longa daqueles que são 98% animais, 97% animais, 96% animais, e por aí vai.
***
A Beleza da Arte (e o que salva a Vida), entretanto, é que nós não vivemos em um mundo de simetria de resultados.
A humanidade gerou um Shakespeare (ou meia dúzia que escreveu as histórias contadas por Shakespeare) e isso compensa todas as Stephenie Meyers do mundo. Cáspita, uma Stephenie Meyer compensa a existência de todos os blogueiros wannabe literatos da internet (Tô falando com você mesmo, Anarco, cuzão!).
Não interessa que 99% dos casais num restaurante estejam passando o tempo entre uma trepada e outra. Talvez exista um casal em meio a todos os restaurantes que já existiram e vão existir que esteja se reencontrando depois de duas décadas sem se ver e precisem apenas saber que eles estão vivos e bem, e que a felicidade é possível.
É possível que aquela cerveja nem-tão-gelada-assim seja mais uma numa longa tradição de cervejas-nem-tão-geladas-assim em bares nem-tão-limpos-assim. É possível que entre todas as cervejas que já existiram e vão existir seja a última que aquele grupo de amigos, inteiro, conseguiu tomar juntos.
A música tocando pode ser música de fundo pro bar inteiro, mas, entre todas as músicas já tocadas e que ainda serão, é possível que ela seja pra menina de cabelo meio desfiado na fila do banheiro a música que ela sempre associava ao outro bar (que fechou faz tempo) onde ela conheceu o primeiro namorado.
A música-nem-tão-boa-assim lembra tempos mais simples-carne-grelhada-com-sal-grosso, mesmo sendo nem-tão-boa-assim.
E esse é o ponto primordial: 99% da vida é feita de espaço vazio, frio e irrelevante assim como 99% dos seres humanos é feito de espaço vazio, frio e irrelevante. Mas aquele 1%… Aquele 1% é um hit de sertanejo universitário invertido. Aquele 1% que sobra compensa todo o resto. Aquele 1% é Estrela.
É muito pouco. Se pá nem existe. Talvez a gente esteja olhando pra uma luz que deixou de brilhar faz tempo e só esteja enxergando o restolho. Mas é esse restolho que compensa o espaço vazio nas mesas dos restaurantes, nos viadutos das avenidas e nas recepções dos aeroportos. Ainda que ele não exista de verdade, mas seja inventado.
99% é vida. 1% é Arte. Viva boa Arte.
Violino.
April 3, 2018 § Leave a comment
Um homem triste toca violino.
O som é horrível. Desafinado, rouco e abafado.
As cordas são seus nervos.
O arco é navalhado.
“A Red Wheelbarrow”.
March 20, 2018 § 2 Comments
(Ou “A Saudades que eu Tenho do Curso de Letras.”)
Mr. Robot é o melhor seriado que eu já vi. O que quer que você esteja fazendo, pare de ler esse texto e vá assistir Mr. Robot.
(Mentira, não para não, termina o texto que eu tô me sentindo carente de leitores. Brigado.)
Em um determinado episódio, um determinado personagem faz a afirmação “A Red Wheelbarrow”, o que deixa o outro personagem perplexo, ao que ele continua “É a única coisa em inglês que meu pai sabia falar”, e declama o poema de William Carlos Williams “Red Wheelbarrow“:
“so much depends
upon
a red wheel
barrow
glazed with rain
water
beside the white
chickens”
A performance dos atores e o desenrolar da história (vai assistir, cazzo) dão ao poema uma emotividade tocante. Admito que eu achei inicialmente o poema tosco (“tanta coisa depende de um carrinho de mão vermelho, molhado de chuva, do lado das galinhas brancas”) mas resolvi ir atrás do poema. E dos Ensaios Críticos. E bateu saudades da Letras.
***
Nas palavras do poeta, ele escreveu aquele poema movido pelo afeto e admiração que nutriu por um pescador e seu filho, que mais de uma vez mencionou que trabalhou “até os joelhos” no gelo, mas não sentia frio. Ao ver o Red Wheelbarrow no quintal, ao lado das galinhas brancas, se sentiu tocado e escreveu.
***
O problema é que, uma vez que o poema é escrito, ele não pertence mais ao autor. Ele poderia falar o que quisesse a respeito do poema e do que o levou a escrever. Pouco importa. Poesia é o que o Leitor lê, não o que o escritor escreve.
Um ensaio menciona que Williams, membro das vanguardas da época e amigo de Ezra Pound, se inspirou no estilo fotográfico, se dedicando a pintar uma imagem com palavras.
Outro ensaio menciona que, por meio da quebra calculada das palavras, ele cria poesia com uma mera frase.
Outro sugere que o Carrinho é uma das máquinas simples de Aristóteles, sugerindo que muito da nossa vida é baseada na simplicidade.
Outro sugere que a chave do poema está na palavra depende.
Nenhum deles tem base no que o Autor quis dizer. Todos eles se baseiam no que o Autor disse.
Intenção e resultado raramente são coincidentes.
***
“So much depends”. Tanto depende. Tanto o quê? Inexiste limitação, inexiste indicação. A primeira estrofe não limita nada e pode ser extravasada para a Vida. A segunda estrofe se limita a uma palavra “upon”. Juntas as duas primeiras estrofes compõe uma única frase, a ser complementada pelas três estrofes seguintes.
A segunda estrofe é, em minha opinião, a chave para o entendimento do poema. Apesar de o título ser “The Red Wheelbarrow”, a palavra Wheelbarrow é separada em Wheel + Barrow. Wheel, a Roda, sendo um símbolo de ciclo e repetição, traz a noção de tempo. E Barrow é, em tradução, um pequeno monte de pedras e terra usado para sepultar os mortos. Uma cova rasa. O ciclo de mortes, todos os que morreram antes de nós, todos os que foram sepultados e fertilizaram a terra.
À imagem da roda e da túmulo se acrescenta a chuva, cobrindo tudo em um filme de água, caindo sobre tudo. Não se controla a chuva. Se aceita. E as galinhas brancas, ao lado, indiferentes. O dia a dia e a rotina, sem planos e sem vontade.
Tanta coisa depende do tempo, dos mortos, do acaso e daquilo que fazemos sem pensar.
***
Saudades da Letras.
Videogame.
February 14, 2018 § Leave a comment
Ano retrasado comprei um Playstation 4.
Depois de década afastado dos consoles (meu último foi um Nintendo 64), resolvi voltar a jogar. Como dito por um amigo, é mais barato que bar ou mulher.
De lá pra cá eu joguei poucos jogos, mas com intensidade. Basicamente, passeei por Fallout 4, Metal Gear Solid V e Witcher III.
O que mais chamou minha atenção (e me agrada na atual fase dos jogos) é o peso que a história e os personagens têm nos jogos. O desenvolvimento dos personagens ganhou laivos estilísticos de literatura. Mais de uma vez eu me peguei torcendo por um determinado personagem e até mesmo desenvolvi um certo afeto. Notoriamente por alguns dos Robôs em Fallout 4, o que gerou uma reflexão interessante (e esse post, dur).
Tema central de Blade Runner é o que nos torna humanos. Se eu tenho uma máquina que possui recordações, uma história e até mesmo livre arbítrio (tanto quanto nós temos – pausa pra discórdia, fim da pausa pra discórdia), podemos falar que ela ainda é uma máquina? Ou estamos diante de algo humano ou aproximado à humanidade? Robôs sonham com ovelhas elétricas?
Por outro lado, nos referidos jogos, não estamos falando nem de uma efetiva inteligência artificial: é uma imitação artística do que seria uma inteligência artificial. Um faz de conta, assim como Romeu, Julieta, Hamlet, Riobaldo, Dom Casmurro, etc. É uma mentirinha, como toda arte.
Não nos relacionamos com os personagens, nos relacionamos com a projeção que fazemos sobre aqueles personagens.
A existência do Capitão Ironsides, Riobaldo, Deckard é mera projeção de expectativas nossas. Projetamos na nossa interpretação do mundo que aqueles seres (que não existem objetivamente) possuem uma consciência (que, efetivamente, não existe).
Nesse sentido, ao torcer por algum personagem (de videogame ou da arte) estamos inventando (com o auxílio do autor, claro) uma entidade. Estamos emprestando uma profundidade inventada para algo que é plano: possui apenas a face que o autor cria e nos mostra.
Discutir se Capitu traiu ou não Bentinho é um exemplo maravilhoso disso: o Autor apresentou a personagem, elocubrações a respeito disso são apenas fruto de uma projeção nossa a respeito de uma Ficção.
A ironia é que até segunda ordem, o mesmo princípio se aplica às pessoas também.
Nada prova que as pessoas com as quais nos relacionamos no dia a dia são mais conscientes ou humanas que um Nexus 6. Projetamos nelas a expectativa que temos de que elas existem, possuem consciência, desejos, vontade, história.
O Outro, também, é uma projeção nossa, construída com base mais ou menos compartilhada e exposta por ele.
Nós não nos relacionamos com pessoas. Nos relacionamos com as projeções que fazemos sobre essas pessoas.
Cai por terra a afirmação de Platão de que a Arte é uma imitação da Vida. A Vida é Arte. Uma obra de Arte em rascunho, sem tempo de passar a limpo, sim, mas Arte none the less.
Diante disso, do fato de que as pessoas com que nos relacionamos são humanas apenas na medida em que projetamos isso sobre elas, apenas uma pergunta deve ser feita:
Você está andando em um deserto e olha pra baixo. Você vê um jabuti andando. Você o pega e vira ele sobre o próprio casco. Ele está lá, se debatendo e com a barriga voltada para o sol. Se ficar assim, ele vai morrer. Mas você não o ajuda. Por quê você não o ajuda?
Manifesto Legeek.
February 7, 2018 § Leave a comment
O Anarcoblog, abrindo uma nova seção do site, passará a publicar os melhores trabalhos de storytelling e branding. Trata-se de realização de um sonho antigo: casar a literatura e a literatice com a atividade empresarial. Comecemos com a parceria que viabilizou tudo isso: Legeek Creative Studio.
Se por um breve momento do Céu você visse
A vida de todos que podem te ver,
E apenas uma palavra pudesse dizer,
O que você falaria?
E qual o valor de se fazer entender?
É mentira que pensamos usando palavras. Um mito propagado sem muita reflexão. Uma simplificação repetida e sem critério. Se essa mentira fosse verdade, recém-nascidos não pensariam, pois não possuem palavras. E sem ter como pensar, recém-nascidos não teriam nem como aprender a falar.
Pensamos por símbolos. Significantes que levam a significados. Sensações, sons e palavras. Sabores, texturas e emoções. Falamos com a língua, os olhos e a garganta. Argumentamos com sons, toques e cheiros.
Não existe mal-entendido, existe mal explicado. Não existem meias-palavras, existe a palavra manca de olhar, sem emoção, desprovida de tom sobre tom. Órfã de desejo e vontade.
A mensagem é o dito junto ao sentido. Se pudéssemos comungar com quem falamos, se pudéssemos falar com formas e cores, se pudéssemos nos expressar com sons e perfumes, com a voz e os sentimentos, com a temperatura e a textura, diríamos tudo o que somos e seríamos compreendidos. Mas há um mar de espaço vazio separando as ilhas que somos.
Se conectar é construir.
Engenheiros usam concreto armado e cabos de aço. Nós transformamos você em mensagem. A comunicação não acontece por acaso. A mensagem não se transmite sem querer. Ninguém compõe uma sinfonia caminhando pela rua e escorregando numa poça d’água.
Não se engane: acreditar que a comunicação não precisa de preparo é como dispensar o médico e o exame do pré-natal. É possível prosperar por acidente, mas essa é a exceção, não a regra. E não temos tempo para o aprendizado por tentativa-e-erro.
Nossa missão é ajudar as ideias a nascer. Dar Forma aos Anseios. Dar Vida às Formas. Somos Engenheiros de Sonhos. Fazemos a síntese do passado, presente e futuro em um único ponto carregado de vida, uma pequena semente, uma semente feita dos seus sonhos, planos e ambições, que traz a essência de quem você foi, é e vai ser. Uma semente que será entregue a cada um que te ver, ouvir e escutar. Que dará ao mundo todo a possibilidade de te conhecer.
Escolha com cuidado. É apenas uma semente pra cada. E você quer vê-la nascer.
This is my Knife.
January 5, 2018 § 3 Comments
This is my knife.
There are many like it,
But this one is mine.
My knife is my best friend.
It is my life.
I must master my knife
As I must master my life.
And I will.
***
O Texto de hoje é sobre facas. Pra ser mais preciso, sobre uma faca em especial. Minha primeira faca. Não em propriedade, mas em criação.
À Esquerda a Faca 01. à Direita a Faca 00.
***
Meus experimentos com Cutelaria começaram cerca de três anos atrás. Infelizmente, se tanto, posso chamar isso de um hobby. Se tanto porque duas facas em três anos é ridiculamente pouco. Vida que segue: é uma diversão, não um trabalho.
A Faca 00 foi um balde de água fria. Todo o trabalho feito foi perdido em menos de um minuto:peguei uma talhadeira de pedreiro, tirei a têmpera, aqueci ao rubro, forjei, desbastei no esmeril, desbastei na lima, corrigi as imperfeições, poli, furei e, na hora do tratamento térmico, a faca derreteu na forja. Um ano e meio de trabalho perdido. Virou lixo. Serrei a parte queimada e guardei a adaga quebrada pra me lembrar desse fracasso.
Por muito tempo eu me esquivei da forja. Me senti incomodado com um erro tão primário. Mas, acabei voltando.
Na verdade, acho que esse foi um dos ensinamentos que eu vi na prática. Eu costumo falar, nas aulas de Astrologia, que essa história de “Virginiano é organizado”, “Escorpionino trepa bem”, “Capricórnio é ambicioso” é clichê. Ninguém, no meu entender, é bom em alguma coisa gratuitamente. O que existe é Amor, e aquilo que se ama você acaba fazendo bem porque gosta de fazer e quer que melhore. Eu amo trabalhos manuais, amo facas e amo cutelaria. Isso não significa que eu seja BOM nessas coisas. Mas significa que eu gosto. Portanto, vou melhorar nelas.
***
Outra coisa que essa faca me ensinou foi que eu estou muito acostumado a compensar falta de planejamento com esforço. Nenhuma das duas facas foram planejadas eu simplesmente “fui fazendo”. Isso implicou em alguns erros. Em alguns casos aparentes. Em outros não.
Just like my life.
***
Existe um prazer único em trabalhos manuais em geral e um prazer especial na cutelaria.
É algo único ser capaz de pegar materiais disponíveis no mundo e moldá-los de acordo com a própria vontade.
Encontrar um bom aço num ferro-velho, tirar o tratamento térmico na forja, cortar, desbastar, polir, afiar e, ao final, dar o tratamento térmico final.
A sensação é a de que você faz parte de uma linhagem de ferreiros de milênios atrás, testando, experimentando, descobrindo, fazendo algo que poucos seres humanos ousaram fazer. É um privilégio.
Além disso, existe o prazer de experimentar coisas que a gente “ouve falar”. O Ferro aquecido a rubro perde as propriedades magnéticas. A Faca temperada é mais dura. Metal ao rubro fica mole. Tantas coisas que a gente ouve falar. Que acredita. Mas não experimenta.
***
Admito que eu afirmei que a primeira faca foi um trabalho perdido para fins literários.
A primeira faca fracassou, mas eu não fracassei. Ela, inteira, foi um aprendizado de erros e acertos. Vocês não fazem ideia de como é difícil limar. Sim, lima. Coordenação motora, força, constância e ritmo. Muito tempo fazendo um trabalho muito repetitivo. Demanda uma paciência que eu não tenho. Ainda.
A Faca 00 foi uma experiência que me rendeu experiência. “Só”. A Faca 01 traz a Faca 00 dentro de si. Eu trago ambas dentro de mim.
Tente, erre, aprenda. Tente melhor, erre melhor, aprenda melhor.
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Durante um tempo eu guardei os restos da Faca 00 como lembrança. Pra manter na mente que alguns cuidados devem ser tomados. Conheça suas ferramentas, mantenha a concentração, um deslize pode tudo a perder.
Hoje eu vejo que eu não preciso carregar esse cadáver para me lembrar disso. Existe uma linha tênue que separa o Rigor do Sadomasoquismo. Too many times I crossed it.
Posso deixar para trás esse erro (e junto com ele tantos outros). Talvez eu a dê para um rio, talvez eu a enterre no túmulo de minha família. Coerente de qualquer forma.
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Anos atrás, num determinado ritual, numa determinada Ordem, recebemos a incumbência de “descer ao mundo dos mortos para encontrar dois filósofos caldeus e perguntar pra eles sobre um livro escrito por eles”. O que eu vi foram dois seres que me falaram que “o Livro foi fruto de uma vida inteira de trabalho e o menor de todos os resultados”. Minha interpretação é que o objetivo não é escrever um livro que sobreviva milênios, mas ser alguém que escreve um livro que sobrevive milênios.
Talvez eu tenha alucinado, talvez eu tenha inventado tudo isso, talvez eu tenha mesmo descido ao mundo dos mortos. De qualquer forma, se foi uma alucinação ou invenção, foi uma alucinação ou invenção sábia pra caralho e eu estou muito orgulhoso da minha capacidade de inventar e alucinar o que eu precisava ouvir.
Essa faquinha não será passada de pai pra filho. Não será uma herança de família. Não é grandiosa e nem perfeita. Mas é minha, feita por mim e traz a minha marca nela.
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Hobbies são uma questão complicada. Por um lado, eles tiram energia que poderia ser aplicada a outras coisas. Por outro, eles permitem um aprendizado diferente daquele que você teria normalmente.
Hoje eu tenho uma faca de combate. Eu não pretendo andar com ela por aí. Na verdade, ela já está no meu altar e não pretendo que ela saia de lá.
Eu não perdi horas fazendo uma faca. Eu gastei horas aprendendo a fazer uma faca. E hoje eu sou um ser humano que sabe mais do que sabia antes.
Hora de começar a faca 02.