Uma vida em 72 horas

August 22, 2013 § 1 Comment

Ao completar trinta anos, você ganhará os olhos duros dos sobreviventes. Só verá sua amada na parte da manhã e da noite, só encontrará seus pais de vinte em vinte dias. E quando seus velhos morrerem, você ganhará um dia de folga para soluçar e gritar que deveria ter ficado mais próximo deles. Sorria, você é um jovem monolito e a vida vai ser pedrada. O trabalho é uma grande cadeia e você sentirá muito alívio por ter uma. A cadeia engrandece o homem, o sangue do dinheiro tem poder. Reze. Reze ajoelhado por uma carreira, dê a sua vida por ela. Viva como todo mundo vive, você não é melhor que ninguém. Porque o dinheiro move montanhas, o dinheiro é a igreja que lhe dará o céu. Sorria, você é um jovem monolito e o mundo é uma pedreira. Eles irão moer você todinho. De brinde, muitos domingos para chorar sua falta de tempo ou operar uma tendinite. Nas terríveis noites de domingo, beba. Beba para conseguir dormir e abraçar mais uma monstruosa segunda-feira. Aquela segunda-feira que deixa cacetes moles e xoxotas secas para sempre. A vida é uma grande seca, mas ninguém sente calor: Nas salas refrigeradas, seus colegas de trabalho fabricam informação e, frios, sonham com o dia dez do próximo mês. Você é o Babaca do Dia Dez, não há como mudar o seu próprio destino. Babaca que acorda assustado, porque ninguém deve atrasar mais de vinte e cinco minutos. Eles descontam em folha e você é refém da folha, do salário, do medo. Ninguém tem o direito de ser feliz, mas você ganhará a sua esmola de seis feriados por ano. E todos nós vamos enfrentar, juntos, um imenso engarrafamento até a praia. Para fingir que ainda estamos vivos. Para mostrar que ainda somos capazes de sentir prazer. Para tomar um porre de caipirinha sentado em uma cadeirinha de praia. É uma grande solução. E você ainda ganhará quinze dias de férias para consertar a persiana, pagar contas, fazer uma bateria de exames. Ninguém quer morrer do coração, ninguém quer viver de coração. Eu não duvido da sua capacidade de vencer: Lembre disso no primeiro divórcio, no primeiro infarto, no primeiro AVC.
André Dahmer, Monumento a um Jovem monolito.

Jovem de 21 anos morre após trabalhar 72 horas seguidas em Estágio de Verão no Bank of America.

A notícia circulou um pouco pela internet, fiz um post (resumidamente o texto e o link acima) no facebook, e refletindo um pouco mais, gostaria de prestar uma homenagem ao Estagiário Desconhecido, essa vítima nas engrenagens sociais. O KY das relações econômicas.

Meu jovem (e peço desculpas por chamar-te “meu jovem”, mas a década que separa nossas idades tende apenas a crescer), você deveria se sentir vitorioso.

Sim, vitorioso porque você conseguiu, antes mesmo de se formar na faculdade, aquilo que todos os seus amigos, parentes, conhecidos e colegas sempre desejaram: uma intensa vida profissional em uma grande empresa, com uma gloriosa morte de tanto trabalhar.

Não se engane: você conseguiu em um estágio de férias o que a grande maioria dos seus amigos demorará décadas para conseguir: desperdiçar uma vida como um escravo de colarinho branco sem objetivos ou metas que não o bônus do meio do ano e a prostituta de luxo comemorativa.

Sim, é verdade, você não teve a oportunidade de comprar um carro italiano, viajar para culturas exóticas e cheirar cocaína com seu chefe. Mas acredite, o que lhe faltou em experiência lhe sobrou em velocidade: és o Usain Bolt do mercado financeiro.

Seus pais sentirão sua falta, mas não se preocupe: há uma chance bem grande de eles conseguirem uma gorda indenização do Banco em virtude da sua morte. Uma indenização que não fará eles lhe esquecerem, mas que, ao menos, dará a seus genitores a sensação de que a Justiça foi feita. Não vamos dizer para eles que essa ação judicial provavelmente será conduzida por um advogado e um estagiário que, tais quais você, vararão a noite em claro para projetar o próprio nome nos registros judiciais (e empresariais).

Seus amigos… Bom, seus amigos, admitindo que existam amigos de alguém tão concentrado e disciplinado, alguns vão achar um absurdo o que aconteceu, e vão prometer a si mesmos que não serão iguais, e colocarão uma clara linha de objetivo que pretenderão atingir para então se aposentar. E obviamente não a atingirão.

Outros vão ser mais ponderados “o cara exagerou”, uns dirão. Outros dirão que você “deveria saber da sua doença”. E vão ter uma postura mais equilibrada: “Trabalhe, mas não muito, para poder trabalhar sempre”.

Talvez alguns mudem de opinião a respeito da vida. Talvez você vire mais posts de blog. Talvez você um dia vire um meme, ou uma apresentação de power point com uma música chata de fundo que pessoas reencaminharão entre uma planilha e outra pra se sentir parte de uma vida menos fútil.

Mas isso não importa: você conseguiu o que desejava: Trabalhou em uma grande empresa até morrer, será lembrado por colegas e amigos como alguém muito esforçado e, em breve, esquecido.

Me questiono o que você conseguiu com isso. Se você se sentiu realizado pouco antes de cair inconsciente no banheiro. Ou se você se sentia estafado, vazio de sentido e significado. Qual foi seu último pensamento? O aperto de mão do seu chefe dizendo “bem vindo a bordo”, ou de sua primeira namorada dizendo “continue, por favor!”? Talvez de um velho amigo.

Será que você se arrependeu? Teria você se arrependido menos se, ao invés de morrer aos 21 anos como estagiário, tivesse morrido aos 54 como vice-diretor? Seus amigos se arrependerão nos anos que se seguirão?

Ou era um homem em uma missão? Um jovem paraquedista no dia D, preso nas engrenagens das máquinas de guerra? Lamento dizer que você não terá memorial nem cruz branca, pois monumentos são partes dos tempos de paz, e essa guerra não tem data para acabar.

E por isso, peço desculpas por não lhe dar seu nome. Não me referir a você pela sua identidade. Nomeando-lhe, deixarão de pensar em você como quem você realmente é: O cara na frente do computador. Quero que toda vez que alguém perguntar “lembra do cara que trabalhou até morrer?” a resposta não seja sim ou não, mas sim “qual deles?”.

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