Flexões.

March 12, 2024 § 1 Comment

Muito por influência do meu tio, eu comecei nas artes marciais bem cedo. Obviamente, no começo da vida, treinei karatê shotokan, que era grosseiramente o que tinha na época na cidade.

Parei um pouco. Voltei um pouco. Fui seguindo nesse ritmo até perto dos quatorze anos, quando conheci o hapkido, a arte marcial que me conquistou. Durante cerca de dois anos me dediquei ao hapkido com intensidade, até que o professor parou de dar aula naquela cidade. Voltei ao karatê, parei. Anos depois voltei ao hapkido e treinei diversas outras artes marciais.

O primeiro período no qual eu treinei, porém, foi o mais marcante.

Meu professor à época (Luiz Carlos de Oliveira, então 1º Gub de Hapkido estilo Boom Moo Kwan e 1º Dan de Taekwondo) era um negro de menos de 1,70 m de altura, trincado e cheio de maldade didática no coração. Como a gente apanhava dele. E como eu aprendi. Uma tristeza que carrego foi ter parado de treinar com ele e perdido o contato. Se alguém aqui o conhecer, mande meu abraço.

Sem entrar no mérito da técnica (e ele era muito técnico), sem entrar no mérito das acrobacias (e o hapkido é muito – talvez demais – acrobático) uma coisa que nos surpreendia era como ele era definido e forte (em termos de força física, não de tamanho).

Um dos feitos que ele fazia com frequência era uma série de 100 flexões “para aquecer”. Dez para braço, dez para peito, dez de punho fechado, dez de munheca, dez na ponta dos cinco dedos de cada mão, dez na ponta de oito dedos e seguindo até encerrar com dez na ponta dos polegares.

Obviamente, nós, adolescentes, ficávamos impressionados. A resposta dele, pontual, era “Hapkido deve ser treinado todos os dias. Se vocês não conseguem treinar todos os dias, pelo menos treinem o condicionamento. Façam flexões, abdominais e agachamentos, todos os dias.”

Talvez eu esteja errado exatamente sobre a integralidade do conselho, mas, se estiver, não estou muito. E, naquela época, do alto dos meus quinze anos de idade, comecei a fazer flexões. Todos os dias. Antes do banho. Três séries de quantas eu aguentasse. Houve uma época em que eu estava muito bem e conseguia fazer uma série de pouco mais de cinquenta.

Acho que isso mudou minha vida.

Efetivamente, começar a fazer flexões foi o que mudou o meu corpo de criança para um corpo de homem. A quantidade de gordura caiu, melhorou o tônus muscular e até mesmo um pouco do volume. Graças a isso me tornei “um homem de peito” (mas sem bunda).

Anos depois, pratiquei outros esportes, do rugby à musculação. Tive ganhos, tiver perdas, e, como as coisas tão comumente ocorrem, dei uma bela engordada e passei mais de uma década tentando voltar a treinar sem conseguir.

Recentemente, meio que de resolução de ano novo, decidi voltar a fazer flexões. Tantas quantas eu conseguisse, todos (ou quase todos) os dias. Em janeiro, o primeiro dia em que eu comecei, consegui fazer uma série de cinco flexões. Três meses depois, estou conseguindo fazer séries de 28 flexões. Um ganho relevante, para três meses de treino.

Mas mais do que quase sextuplicar meus limites nesse exercício, muito para minha surpresa, meu corpo está mudando. Notoriamente.

Com apenas um exercício, feito sem disciplina (“tantas séries de quanto eu consigo quanto dá” tá longe de ser uma periodização de treino relevante) consigo perceber diferença visual no meu corpo, coisa que eu não via há anos. Inclusive em áreas que “não deveriam” ver diferença.

E, mais importante até do que isso, começa a surgir a vontade e condições de incluir outros exercícios na rotina. Agachamentos. Talvez abdominais. É como uma retomada da autoridade sobre o próprio corpo e mente.

Talvez eu tente colocar uma academia na rotina. Talvez eu continue nesse regime caótico, mas recompensador. Mas não posso deixar de agradecer ao professor, arte marcial e exercício que mudaram minha vida.

Realidade Reduzida.

March 2, 2024 § 2 Comments

“Só não sei como conseguimos passar cinco anos de faculdade convivendo sem perceber como discordamos essencialmente de valores éticos e humanos assim.” – CLASSE, Colega de, circa 2023

Espere! Estou tendo uma visão! Nos últimos dez anos você viu, lentamente, pessoas que considerava amigos próximos mostrarem um comportamento e defenderem opiniões que você julgou nunca serem possíveis naquela pessoa. Pouco a pouco seu círculo de amizades e de pessoas nas quais confia foi se reduzindo, reduzindo, reduzindo até um momento em que você se sente com apenas um grupo pequeno de amigos que, felizmente, se mantiveram fiéis aos ideais e ideias que você defende.

Se eu acertei (e provavelmente acertei) é menos em virtude dos meus poderes precognitivos de origem lusitana (Manoel vira a esquina e vê, adiante, uma casca de banana. Respira fundo e desabafa: “Ora poish, lá vou eu me fudeire de novo!”) do que por um chute estudado: Não é só com você. Na verdade, tal evento é bem distribuído e foi sentido pela colega de classe acima.

Atrevo-me a dizer, porém, que pouco ou nada mudou de verdade nos últimos 20 anos objetivamente.

Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso! Acaso não caístes em contradição com o jocoso exercício de divinação encenada?

Eu vos direi no entanto que para ouvi-las muita vez desperto: O mundo pouco ou nada mudou nos últimos vinte anos. O que mudou foi nossa interface com o mundo.

Vinte e poucos anos atrás, o convívio nos bancos de faculdade era, bem, nos bancos de faculdade (e nos bares, e nas festas e nos lençóis). Hoje, o convívio é em redes sociais. E pessoas, em redes sociais, não são pessoas, são opiniões. E é muito fácil odiar uma opinião.

Caio é pró Palestina. Ele não é uma pessoa que tem mau humor matinal, prefere gatos a cachorros, prefere pilsen a IPA (Coisa amarga que apaga o gosto da comida.), está tentando fazer pão artesanal em casa (Perdi meu fermento de três meses!), tem uma mãe meio velhinha com câncer e um pai meio velhinho assustado com a prevista viuvez, se questiona de vez em quando por onde andará Suzi, sua paixãozinha de adolescência, brinca com os filhos e se desespera com o time sheet (Se eu fico no escritório das 10:00 às 21:00, como eu só debito 6 horas por dia?).

Tício é pró Israel. Ele não é uma pessoa que está tentando aprender a tocar violão depois de adulto (Meu pai tentou me ensinar e eu falhei, será que agora eu consigo?), está consistentemente acima do peso desde os 26 anos (Será que um endócrino me receita anabolizante?), jura de pé junto que vai ler Ulisses esse ano e não se conforma como como Duna é mal escrito. Está solteiro e com medo (Será que vou encontrar alguém?) e se questiona realmente se deus existe. Queria reencontrar a alegria de jogar futebol com os garotos da rua no interior (será que eles estão vivos ainda) e queria ter falado para o avô que a memória mais antiga que ele tem na vida é de subir o morro para consertar a cerca e ver um arco de pua funcionando.

Caio e Tício não conseguem ver além da primeira frase. Se tornam inimigos mortais, vilões, se assim desejar, porque em redes sociais somo personagens planos, e não rostos, olhos, carne, sangue, amor e drama.

Não que não existam vilões fora das redes sociais. Canalhas existem, mas em número infinitamente menor do que parece.

Por isso, quando as coisas parecerem insuportáveis, ruins mesmo, o mundo parecer um mar de antagonistas mal escritos… dê uma volta no seu bairro, vá a uma feira, encontre desconhecidos. O mundo real é muito menos agressivo do que a internet faz crer.

Os sentidos não curam a alma, porém, amenizam a dor.

Nunca atribua à maldade o que pode ser explicado pela burrice.

February 22, 2024 § 1 Comment

A burrice é muito mais democrática, distribuída e comum que a maldade. A grande maior parte das pessoas passa a vida tendo conhecido meia dúzia de pessoas más e um infinito de estúpidos.

A vida se torna mais suave quando os antagonistas são estúpidos e não maus. A piedade se torna uma virtude mais alcançável. As faces ficam menos amargas.

Porém, nunca se esqueça que a partir de certo ponto, a burrice se torna maldade.

É necessário uma postura ativa para se ignorar evidências. É necessário vilania para se fazer de desentendido. É necessário mesquinhez para não criticar os erros que lhe convém.

E o enfrentamento destes antagonistas é pouco ou nada recomendado. O estúpido não enxerga. O vilão não se importa.

O Épico Lírico Dramático.

December 25, 2023 § Leave a comment

É uma tradição na literatura dizer que a Arte “evoluiu” do Épico para o Lírico e do Lírico para o Dramático.

O Épico retrata o homem contra o mundo, que pode ou não estar representado em Deuses. Odisseu retornando para casa enfrenta as artimanhas de Poseidon. Aquiles enfrenta a guerra de Tróia. Os dois hobbits sobem a montanha para queimar o anel. Todo herói diante de um desafio exterior viaja numa trajetória Épica.

O lirismo por sua vez fala do Eu. Como eu me sinto, como eu me vejo, que sofrimentos perpassam meu coração. O que eu desejo. A individualidade, o viver no momento, as dores e as delícias de ser quem se é são a parte que cabe desse gênero literário.

O drama, por sua vez, é o mundo rodando em sua verossimilhança. O autor apresenta as engrenagens, mas elas se movem sozinhas. Édipo é apresentado no começo da peça como o mais sagaz dos mortais… de daquilo seus dramas se desenrolam.

Obviamente, muito se critica a separação dos gêneros de forma estanque. Acaso Atena segurar os cabelos (loiros, Disney!) de Aquiles não é uma representação do lirismo do Pelida? Não é Ulisses acalmando o próprio coração um exemplo de lírica? O Épico fala sobre o mundo, mas não torcemos pela ira de Aquiles ou pela astúcia de Odisseu?

Longe de ser desnecessário, o Drama fala sobre a trajetória do Eu. De onde viemos e para onde vamos, sendo quem somos, obviamente. Nem todos são protagonistas da Guerra de Tróia. Nem todos triunfam sobre a malícia dos deuses. Mas somos todos protagonistas dos nossos dramas.

E nossos dramas se distinguem do drama literário porque, se no drama literário o deus ex machina ou o elemento externo entrando na história é a marca do mau drama, na vida é um sorriso da fortuna.

Drama não é adjetivo, mas sujeito, que provoca o desenrolar da trama ou o engrenar da máquina do mundo que roda, roda, roda… e para onde quer parar.

Mais um post metalinguístico à luz dos recentes comentários.

December 15, 2023 § 1 Comment

No último mês eu tive mais comentários no blog do que nos últimos dez anos.

Ok, dez anos é exagero, mas no último mês e meio eu obtive três comentários (não spam) sendo que o último comentário real foi em 2020. Ironicamente os três comentários foram num post de 2010 abreaspas Sobre Vagabunda, Putas e Atrizes Pornô fechaaspas, escrito em 2010, salvo engano, ainda hospedado no Malandricus Bar & Vodka.

Ironicamente, ou não, o texto começa com “Porque um post ganha muito mais visitas quando aparenta falar sobre sacanagem…” (grifo nosso).

Pois bem, à época, havia uma grande running gag a respeito de atrair mais leitores para o blog, e sobre como isso era uma prostituição da arte. Discutíamos (com tanta seriedade quanto possível) como atrair mais leitores e se isso era prostituição. Éramos com isso putas? Atrizes pornô? Meras vagabundas? Seria um dirty secret se valer de palavras específicas para tentar chamar a atenção dos Search Engines?

Intitulei o post como uma declarada provocação, intencionando aproveitar o “cata-corno do google”, nos dizeres do grande André Dahmer.

E hoje, 13 anos após a concepção do texto, vinte anos após eu começar a escrever na internet, o único texto que atrai novos visitantes é um texto meio bosta que, ainda por cima, não é compreendido, apesar de falar explicitamente no primeiro parágrafo que ele aparenta falar sobre sacanagem e ser um texto em duas partes, sendo que a segunda explicita a primeira.

Esse blog é praticamente o black face do Trudeau. Algo que na época foi engraçado e iconoclasta mas hoje só me envergonha.

(Mentira, meus melhores textos estão aqui, mas óbvio que ninguém vai no “Projeto Ficção” ver do que se trata.)

Dia dos Pais.

August 7, 2023 § 1 Comment

A uma semana do dia dos pais, decidi deixar o marasmo e escrever o texto que eu estou fermentando há meses (desde o dia das mães, para ser bem sincero).

É algo de importância muito questionável (portanto, adequado para este navio fantasma), mas importante de se dizer: Dia dos pais é para os pais e dia das mães é para as mães.

Por favor, não deem feliz dia dos pais “a você, mãe, que também é pai”, nem deem feliz dia das mães “a você, pai, que também é mãe”.

Não são.

Uma mãe que cria um filho sem o pai ou um pai que cria um filho sem a mãe são, respectivamente, mães e pais em uma tarefa hercúlea de criar um filho, não um amálgama de pai e mãe.

Ao falar que determinada mulher é “mãe e pai” ou que determinado homem é “pai e mãe” a única coisa que se diz é “olha, aquela pessoa está se esforçando para cumprir com ambos os estereótipos de gênero”.

Nada mais.

Não bastasse a adesão a uma visão estereotipada (ainda que verdade) afirmar que certo parente é paie e mãe é ignorar algo basilar: um pai é o modelo de comportamento masculino e uma mãe o modelo de comportamento feminino de uma criança. Um pais solteiro “apenas” está dando à criança um modelo masculino amplo e esforçado assim como uma mãe solteira “apenas” está dando à criança um modelo feminino amplo e esforçado.

Sexo importa, pais e mães solteiros estão diante de uma tarefa hercúlea e dolorosa, e merecem respeito, mas não cumprem a tarefa do outro gênero.

Afirmar que o pai solteiro é pai e mãe (e que a mão solteira é mãe e pai) não só ignora a relevância biológica como pretende que eles precisem cumprir a tarefa do outro para serem grandes.

E não precisam.

Desespero.

June 12, 2023 § Leave a comment

Nenhum texto sobre desespero foi escrito por uma pessoa desesperada.

Em desespero alguém pode muito bem contemplar o suicídio, o homicídio ou o rodapé do box do banheiro enquanto o chuveiro despeja lágrimas, mas nunca o papel em branco ou a tela e o teclado. No abraço do desespero ninguém tira selfies.

Na melhor das hipóteses, um texto sobre desespero é um quadro pintado de memória, um retrato de uma foto, se assim desejar. Talvez o autor, cansado da viagem, decidiu descrever o prato jantado, como um blog culinário de turismo de alguém que comeu as cinzas do álbum de fotos de casamento.

Na pior das hipóteses, um texto sobre desespero é um pedido de atenção, não de ajuda.

Talvez todos os sentimentos assim o sejam. Alguém realmente alegre talvez não perdesse seu tempo escrevendo sobre a alegria, mas não parece verdade. A Alegria, o Amor e os demais sentimentos nobres e belos possuem motivo para serem eternizados, nem que por pura vaidade.

Já o desespero, em sua raiz a pura falta de esperança, não. Não se pinta o quadro sobre o vazio, nem se compõe uma melodia à ausência. Como diz o poeta, pessoas confessam pecados e violências, não infâmias e covardias.

O ponto é que a arte é limitada como um ponto. Como diria o mesmo escriba, o poeta é um fingidor e, consequentemente, o desespero lido é desespero fingido. Talvez essa seja a versão analógica dos filtros de instagram, um verniz de idealização caçando curtidas e trepadas numa época em que textos eram mais fáceis de escrever do que fotos. Lord Byron, vivo hoje, certamente usaria filtros e instagram.

Se a experiência humana se apreende por meio da arte, que é um retrato de uma foto, nem mesmo a certeza a respeito das dores existe. Talvez os seres humanos sejam eternas crianças, que confundem frio com fome e fome com dor. Talvez, de fato, todo homem e toda mulher sejam uma estrela: vivendo isolados no frio espaço vazio, contando como verdade a luz emitida milhões de anos atrás por outras estrelas que, talvez, nem existam mais.

Namoradas.

May 27, 2023 § Leave a comment

– Você me ama?

– Amo.

– Pra toda vida?

– Pra essa vida e pras próximas. Até esta morte e as outras. Até ver a face de deus. Até o diabo invejar. Até o universo envelhecer. Até o espaço esfriar. Até a criação escurecer. Até e o tempo morrer. Mais do que o afogado ama o ar. Mais do que o pescador deseja o mar. Como o noivo espera a noiva. Como a noiva espera o noivo. Como a madrugada se prepara para o nascente. Como o fruto se prepara para a semente. Nutrindo como a grávida ao feto. Atento como a orquestra ao maestro. Ansioso como criança no natal. Tranquilo e extático. Sorridente e dramático. Eternamente e pra sempre. Te amo.

– Mas ama mesmo?

Cosimento.

March 23, 2023 § Leave a comment

Uma das máximas da cozinha é “deixar o fogo trabalhar”. Pratos diferentes demandam temperaturas diferentes. Por vezes você deseja o choque rápido de uma mudança brusca de temperatura. Em ocasiões diversas um lento cozimento por dias num encantador caldeirão. Existe uma linearidade invejável na cozinha.

Mas este texto não é sobre cozimento e cozer, é sobre cosimento e costurar.

***

Um dos crimes mais deploráveis dos quais sou culpado é a compra indiscriminada de livros que permanecem por anos a fio nas estantes, aguardando um momento de leitura que pode ser que nunca chegue, como um condenado à morte com um câncer terminal espera pela execução da pena.

Parte da culpa por tal crime é uma ambição desmedida (certamente um dia lerei O Dicionário Infernal), outras vezes é um mal colocado desejo de me adequar a um padrão socialmente aceito de cultura (por óbvio ninguém deve morrer sem ler A Ilíada). Um sem número de vezes são testemunhas silenciosas de fases estranhas da minha vida (olá, Gramática do Hebraico Bíblico, estou falando de você).

E ocasionalmente são vítimas de um crime de motivo fútil: Olha! A Autobiografia do Humberto Gessinger! Eu PRECISO comprar esse livro que estava num saldão de uma livraria para deixar uma década parado e ler de repente no momento mais propício depois!

E, sim, nada disso é álibi, mas sim confissão de culpa.

***

Engenheiros do Hawaii é talvez o meu maior guilty pleasure. Uma frequente confissão quase jocosa de que eu gosto de música ruim. O adjetivo ruim, aí, vem do fato de que eles são os estranhos do cenário musical do pop/rock da década de 80. Renato Russo ainda tem ardorosos defensores. Cazuza talvez seja o mais criativo e lírico artista daquela geração. Diversos outros são melhor entretenimento e gozam ainda hoje de um reconhecimento maior.

Para mim, porém, Engenheiros do Hawaii sempre foi a banda da qual eu me considerei realmente fã.

Uma das recordações mais antigas que tenho é a de acordar sem motivo alguma manhã antes do sol nascer e decidir, criança, ligar a televisão. Mal sabia eu que a programação ainda não havia começado e a tela traria apenas as faixas coloridas indicativas da ausência de programação e música, no caso, Exército de um Homem Só, que talvez seja a grande culpada por eu ser quem sou, ou a cúmplice perfeita, Bonnie para o meu Clyde.

***

Não pretendo fazer uma grande resenha a respeito do livro, devorado em uma sentada. Sua relevância para não fãs é nula. Para fãs, talvez ainda assim seja pequena. Porém, um breve aparte a respeito de um dos topos do livro merece ser feito, e que conversa maravilhosamente bem com o filme “Bohemian Rapsody”.

No livro, Gessinger narra que por ocasião da composição de “Terra de Gigantes” o empresário da Banda mencionou que a música tinha potencial para ser um sucesso, mas precisava de bateria para se encaixar no formato esperado de uma baladinha de sucesso.

No filme, por sua vez, o Empresário da banda critica a música “Bohemian Rapsody”, falando que nenhuma rádio iria tocá-la, pois ela é muito longa e confusa.

Ambos os artistas (meio feio colocar Queen e Engenheiros em comparação, ok), porém, decidiram ir contra as orientações do empresário e manter a obra como está. Gessinger mencionou até que colocou uma virada de bateria pra fingir que ia colocar a bateria, só de zoeira com o empresário.

***

A grande lição de vida que eu tiro desse ponto, nesse momento (em que me questiono para quê voltar a escrever e em tempos de chat gpt e AI artística) é que existe uma grande distância entre a criação artística (nos dizeres de Mário de Andrade) viril e criar para o público.

Sempre defendi e continuo defendendo o pop. Escrever uma canção como “Evidências” que permeia a cultura e o conhecimento coletivo de um país merece, com toda a certeza, enorme respeito.

Porém as fórmulas e anti-fórmulas artísticas são terreno árido e estéril. Como um brutalismo literário, escola de engenharia forçosamente levada ao campo da arquitetura.

Algum jornalista disse que jornalismo é publicar o que ninguém quer dizer, e que qualquer coisa diferente disso não é jornalismo, é relações públicas. Escrever o que o público quer ler não é arte, é engenharia.

***

Qual a linha invisível que uniu um livro comprado uma década atrás e que ficou cozinhando em minha estante, Bohemian Rapsody, Chat GPT e esse blog eu não sei, mas esse é o mistério da costura: ora a linha se vê, ora não se vê, mas as coisas que une se tornam um novo tecido.

Este Blog é uma Ferida Aberta.

March 22, 2023 § Leave a comment

Que eu tenho medo que se feche.

Tenho um punhado de coisas das quais me orgulho e escrever é uma delas.

Pode parecer presunçoso, talvez até prepotente, afirmar que tenho um punhado de coisas das quais me orgulho, porém, em sua raiz, punhado é uma porção que cabe num punho. Nesse sentido, ter um punhado de coisas das quais me orgulho é algo deveras preocupante.

Este blog comemora, em 2023, dezenove anos de idade. Quase duas décadas. E por muito tempo foi por ele que eu me definia. Quem sou eu? Um cara que escreve. Que ocasionalmente escreve bem. E com alguma frequência acerta a veia da literatura.

Hoje eu tão pouco, talvez nada, escrevo.

Tomo a iniciativa de devassar a ferida aberta. Um blog que eu não apago, mas também não nutro. Nem morto. Nem vivo. Talvez nisso um retrato de mim mesmo.

Cheguei na internet quando era tudo mato. A gente jogava bola onde hoje é o Twitter. Instagram a gente conhecia como fotolog. Era uma época em que a produção de conteúdo demandava um pouco mais de trabalho, era um pouco menos imediata. Menos acessível. A postagem demandava intenção, uma mensagem a ser dita. E era uma era sem algoritmos.

Ou eu estou, novamente, idealizando o passado. Talvez a internet fosse igualmente entediante, mas eu estivesse adolescente apaixonado com estrelas nos olhos.

O Drama real continua sendo o tema proposto pelo paraninfo de minha formatura na faculdade: a pior saudades que existe é a saudades de si mesmo.

É isso, se os Alcoólicos Anônimos estiverem corretos, esse é o primeiro passo, admitir a existência do problema. Sinto saudades de mim mesmo. Sinto saudades de uma internet em que as pessoas produziam textos íntimos e pessoais, não porque não existam mais textos íntimos e pessoais, mas porque eu não os procuro nem os escrevo.

Alguém, em algum lugar, está fazendo boa arte. Está naufragando em um oceano de emoções e jogando baldes e baldes de textos, poemas, crônicas e literatura pelo tombadilho na esperança de que, se se esforçar muito, vai tirar mais água de dentro de si do que entra, evitando o soçobrar e uma lenta morte abraçado à lauda de salvação.

E eu só preciso encontrá-lo.

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